Dia de Finados no cemitério do Itacorubi

Dia de Finados no cemitério do Itacorubi, relato de uma observação flutuante 

Autor:  Dagoberto José Bordin

Cemitérios são, por excelência, lugares de memórias, de lembranças não só de pessoas, mas de todo um passado que o trânsito por entre as lápides evoca, nesta parte do ordenamento urbano predestinada aos mortos. Nomes ilustres ao lado de ilustres anônimos, percorremos estas trilhas de histórias os integrantes do Naui – Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural, sob a coordenação da professora Alícia Norma González de Castells, em conjunto com os alunos da disciplina de Antropologia Urbana, do curso de Antropologia Social da Ufsc, numa pesquisa de campo realizada no cemitério do Itacorubi, em Florianópolis, no dia 2 de novembro de 2011, Dia de Finados.

Os resultados foram compartilhados em relatos durante a aula e numa galeria virtual de fotos realizadas por Dagoberto Bordin e Paula Aragão, que também disponibilizou o texto Ritos funerários entre os florianopolitanos: corpos em diálogo, do prof. dr. Fenando Bitencourt . A colega Giovanna Licia Triñanes iluminou nossa exploração com um artigo de Colette Pétonnet intitulado Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense

Nossa atenção, num primeiro momento, volta-se para a apropriação do espaço e para as inúmeras tentativas de organização, de delimitação, de padronização dentro de perímetros imaginados como comuns. Há túmulos nos interstícios, mas há apenas lápides em alguns espaços, uma tentativa de imitar o Jardim da Paz; noutros momentos, há um grande território uniforme com apenas sepulturas de uma mesma família, outro quadrilátero é destinado às crianças, com brinquedos sobre os túmulos, espaços mais nobres e outros desvalorizados, uns buracos sem nenhuma identificação. Tentativas de delimitar a circunscrição dos mortos logo depois são expandidas com muros e extramuros. Uns possuem toldos. Flores vivas, flores de plástico. Num ponto, um pote com comida para os cachorros. Logo ali, a menina santa, Vida Machado, com duas esculturasem dourado. Adotadapor um vereador, dono de uma creche no Morro da Queimada, ela tinha aids e agora diz que opera milagres.

Uma coleção de tumbas, digamos assim, o acervo que um cemitério é, pode ser analisado sob a ótica do colecionismo proposto por Baudrillard em O sistema dos objetos. A jornalista Néri Pedroso, no livro Extramuros, coletânea de fotos de cemitérios alemães antigos realizada por Gill Konell (Bernúncia Editora, 2011), diz que o cemitério revela que a realidade, ao fim, “nivela a tudo sem piedade”. Que voltaremos ao pó.

Mas mesmo ali, onde tudo determina o desamparo do desaparecimento e do gradativo esquecimento, ainda ali a distinção esperneia, depois da morte, no espaço que o morto ocupa, na arquitetura de sua tumba, nas fotos, umas com medalhas, com títulos, sorrindo, o casal para sempre reunido, o rapaz com a prancha de surfe, a moça com o decote, fotos com fundos fotoshopados no dia da formatura, um segundo-tenente, o homem que morreu velho com a foto de sua primeira comunhão, um rapaz de óculos escuros fazendo o V da vitória sobre uma montanha, no fundo o mar; o rapaz que ri com boné e agasalho da Billabong, sob a sombra de uma grotesca pietá em mármore negro, Nossa Senhora envelhecida.

As pessoas chegam para homenagear seus mortos – mais mulheres – com baldes, vassouras, enxadas. Uma hora falta água, daí vem o caminhão-pipa, aquele barulho infernal de marcha à ré. Gritam os vendedores de cerveja, gritam os mortos para que os deixemosem paz. Túmuloscom apenas uma data, outros com apenas uma foto. Umas inscrições no próprio cimento, outras em granito preto. Tem quem não visite o cemitério só no Dia de Finados, vem no aniversário, na Páscoa, no Natal. “A gente vem todo dia 21, que foi o dia em que ela morreu”, relata uma senhora, sobre sua mãe. Mais adiante, muito lixo, as flores do ano passado se ajuntam num monte que agora queima e cheira a plástico queimado, a restos de velas. Sobre os túmulos mais toscos, propagandas de marmorarias abrigadas do vento debaixo de umas pedrinhas.

Pessoas vestidas de branco trouxeram mais cedo uma galinha morta, cigarros queimados, pipocas, copinhos de cachaça. Numa escultura está escrito assim: “pomba-gira”. Nos túmulos verticais, edifícios de gavetas uniformes, a tentativa de tridimensioná-los com extensões para vasos, fotos, espécies de “puxadinhos”. Num, um bilhete escrito a mão e fixado com fita crepe, numa folha arrancada de um caderno de espiral. “Filho, estive aqui pra dizer o quanto eu te amo e se saudade matasse eu estaria morta. Da sua mãe”. Outro papelzinho chama atenção: “Convite aos corações saudosos. Você que está com grandes saudades de seu ente querido, já falecido, nos procure. Pois estará acontecendo em Santo Amaro da Imperatriz, nos dias 25, 26 e 27 de novembro, o encontro dos médiuns de psicografias, que conviveram com Chico Xavier. Não perca esta oportunidade, pois com certeza é a chance de você ter notícias de seu ente querido. Contato: www.caravanachicoxavier.com.br”.

No relato de cada um de nós, vieram à tona também, mais que uma apreciação do lugar, suas características arquitetônicas, os discursos presentes nos epitáfios e nossas convicções pessoais sobre a vida e a morte, a vida depois da morte, sobre religião, sobre a experiência de cada um com o tabu que é a morte e a maneira de cada um e de suas famílias de lidar com o assunto.

ESPAÇO ECUMÊNICO Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

PRAÇA DA SAUDADE Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

LUGAR DE ORAÇÃO Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

PUREZA E PERIGO Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

ANJOS DA GUARDA Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

SÍMBOLOS DE EVOCAÇÃO DA VIDA Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

SÍMBOLOS DE EVOCAÇÃO DA VIDA Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

SÍMBOLOS DE EVOCAÇÃO DA VIDA Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

SÍMBOLOS DE EVOCAÇÃO DA VIDA Foto de Dagoberto Bordin em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

SÍMBOLOS DE EVOCAÇÃO DA VIDA Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

DESIGUALDADE ENTRE OS MORTOS Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis

DESIGUALDADE ENTRE OS MORTOS Foto de Paula Aragão em 02/11/2011 no Cemitério de Itacorubi – Florianópolis