Crônicas Urbanas

Encontros Urbanos

Autora: Cristina Rodrigues

Mudei para Florianópolis há 13 anos.  A novidade, a curiosidade, o anseio de desvelar o novo fizeram com que eu olhasse para a cidade de forma especial, principalmente para o centro, lugar que mais frequentava.
Cada praça, cada rua, cada prédio eram diferentes. O estranhamento me perseguia. Entretanto, o que mais me interessava eram as pessoas, homens e mulheres, que compunham o cenário urbano.
Flanando pela cidade, fui fotografando o seu cotidiano. Artistas de rua, jogadores, poetas, passantes, turistas, os que simplesmente estavam ali no mesmo instante que eu. Um eu que observava e era observado.
Este ensaio propõe retratar momentos. São imagens de uma cidade, ou do que aconteceu na cidade, em ocasiões diferentes. Talvez a unidade seja dada por comporem, juntas, uma experiência pessoal.
Essa observação dos vários personagens da cidade, que usam o espaço público de formas tão diversas, fez-me refletir sobre mim mesma. Nunca se tratou de um fotografar casual, mas de imagens que me colocam frente a frente com o meu eu interior.

Todos nós, citadinos, fazemos a cidade produzir poesias, ao menos aos olhos de quem se dedica a escrevê-las. No tradicional bar Senadinho no calçadão da Felipe Schmidt, um senhor, todos os dias, tomava seu café e dedicava-se a compor seus versos.

A arte parece encontrar no calçadão um lugar privilegiado. A arte dos anônimos, dos excluídos das galerias da cidade. Um homem desenha retratos e, enquanto espera um cliente, distrai-se desenhando o que lhe vem à mente.

A música acompanha o passante. Sons de diversos instrumentos musicais complementam-se numa curta caminhada pela rua. O harpista dá um toque de sofisticação, homem viajado, leva sua arte pelo mundo. O sanfoneiro é apreciado por sua habilidade de trazer a música popular para o seu lugar por excelência. Nem só de apresentações ao vivo a música se mostra. Os CDs tocam e trazem a melodia de outros povos. E quem disse que Florianópolis não é cosmopolita?

Mas não é só no calçadão que os artistas fazem da rua seu ateliê e sua galeria, numa bela e democrática exposição. O entorno tem nuanças encantadoras.  Este senhor realmente cativou-me.  Sua generosidade em retribuir as fotos com um quadro comoveu-me.

Além dos artistas, os jogadores são personagens de um centro com aspectos de cidade pequena. Alguns frequentadores assíduos, outros meros caminhantes curiosos com o movimento. Uns esperando sua vez para jogar, outros fazendo hora para um compromisso.

Há lugares em que o carteado predomina nas mesas que compõem o mobiliário urbano.  Em outros, como na Praça XV, o jogo de damas é o mais usual. No átrio da Catedral, sobressai o dominó. Parece que a cidade pode ser demarcada para cada uma das modalidades.  Enquanto isso, outros passantes, numa atitude blasé, sequer tomam conhecimento das redes de sociabilidade que se formam a partir das singelas mesinhas de cimento dispostas talvez aleatoriamente em vários pontos da cidade.

Um inventário de usos e contra-usos pode ser apresentado. O expositor da banca de jornal pode se tornar um lugar para ler as novidades das capas de revista. O banco da praça, o lugar de descanso do trabalhador, numa pestana tirada depois do almoço. Também o banco da igreja pode servir para um cochilo, em vez de uma oração.  Talvez este seja o literal “dorme com Deus”.

Para além do uso da cidade talvez mais informal, há outros mais rígidos, com hora marcada.  O horário de funcionamento dos estabelecimentos pode ser um exemplo. Quase todos os dias, o policial abre e fecha o pátio do museu. Essa rotina permeia outras menos severas, de alguma forma influenciando-as. Os jovens que ocupam esse jardim depois do horário de aula aguardam a abertura dos portões para namorar, conversar ou ouvir música e acessar a internet num ambiente que, embora público, tem uso controlado e vigiado.

Do lado oposto ao centro comercial está o centro residencial. Os prédios relativamente novos, a avenida larga, o calçadão e a ciclovia à beira-mar compõem o perfil mais moderno da cidade. Passear no domingo pelo calçadão visitando as barracas de artesanato que ocupam o lugar é um programa bastante comum para os moradores e visitantes. Se não fosse pelos detalhes modernos, vendo as imagens pensei que estivesse retratando o Rio nas décadas de 70 e 80, numa daquelas orlas da zona sul da cidade.

Caminhar pela Beira-mar e sentar-se para descansar debaixo de uma de suas árvores é encantador. Sentir a brisa no rosto, apreciar a linda paisagem banhada pelo mar é reconfortante.  As árvores mais antigas da avenida são obras de arte. As curvas dos seus troncos e os ramos de folhas que juntos formam uma robusta copa são a passagem poética entre os montes e o mar e o asfalto e o concreto.



A cidade é escrita diariamente pelas pessoas que nela circulam, numa linguagem aparentemente secreta que cada um decodifica de acordo com sua forma de ver o mundo e com as suas escolhas. Esse texto coletivo é incerto e inconstante. Os matizes revelam-se à medida que os atores entram em cena, depois se desfazem, e novas nuanças ocupam o mesmo cenário.
Essa dinâmica da vida social urbana é, para mim, muito instigante. Pensar no que estava escrito no caderno do poeta; no bar que passou a frequentar depois que o seu predileto foi fechado; no próximo esboço do desenhista; na música escolhida para tocar e nos critérios dessa escolha. Onde estarão essas pessoas agora? Suas vidas prosseguiram para além da imagem congelada. São tantas perguntas, por ora, sem respostas.
Assim como a cidade, eu me transformo constantemente. Cada uma dessas seleções tem por trás do obturador uma fotógrafa diferente. Diferente daquela que escolheu as imagens e escreveu este texto. Para os meus interlocutores, sou uma anônima, e talvez tenham a mesma curiosidade de saber por onde ando e quais outras imagens compus. Como eles, também sou uma passante